samira hafiza

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Invasão no morro


Quando tem invasão no morro
o primeiro sinal é o tiro
busca fogo de artifício
quem nunca viu barulho de bala

A gente corre pra dentro da sala
e agacha rente à parede
teme até os raios de luz
que perfuram a nossa janela

Pede a deus por quem é querido 
Pai, Filho, o santo espírito, ave 
Maria sobe a ladeira 
cheia de pressa.

O coração em retalhos
rogando pela vida inteira
A viatura atravessa 
o painel de neon.

E quando a batida se acalma, 
na terra no céu e no peito,
corpos deitados sem leito
colorem o chão.

Da linha do muro florescem 
cabeças pelas vielas
ao canto enferrujado
do portão.

A rua se movimenta
em cada degrau se enfrenta
o susto da morte
da sorte que reina

Avisto um homem de preto
armado parado na esquina
Indago se posso
seguir minha sina

Ele me antecipa – tranquilo.
se assusta com o próprio brilho
do fuzil a cruz pregada
em sua mão.

Retorna contrariado
ao posto que policia.
E como se houvesse pecado
lamenta: um bom dia.



--

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O pombo

O pombo na rua morto
sem sangue nem tripa e nem
sinais de como se morre:
o olhar vazio, um suspiro

Se morto sem nada disso
ou cheiro, sujeira e pio
O pombo na rua torto
não fosse ― estaria vivo

As penas desalinhadas
varetas brancas pousadas
no plano escuro do asfalto
que o carro passou por cima

A asa sai da cabeça
o bico marca a barriga 
triangular, laranja em
monocromático cubista

Cenário estampado ao léu
― sol no céu do Centro e o trânsito
O pássaro assassinado
sem perícia nem espanto  

nem atrapalhar o sábado.
Fosse barata ao avesso
eu até compreenderia
e ignorava  mas não esse.

E quando deus visse o quadro
que Justiça ele faria?
Um engenhoso milagre:
asa embaixo, bico em cima?

Ou compaixão lhe faltasse
as penas eu guardaria
pra enfeitar asas de anjo
na coroação de Maria.


-

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

De vez em quando

Hoje estritamente é sempre
um estado permanente
de outro lado esvai-se quando
a cidade o sol minguando
perfuma a dama-da-noite
e o nunca mais será hoje


-

sábado, 15 de outubro de 2011

Confessionário

Adoro café e jiló
detesto baralho
― Penso
como ordenasse as
gavetas de um armário

Talvez por isso
não seja uma pessoa
esperta exatamente
meu tempo presente

à liturgia silente
de saber onde
tudo está ― contudo
do lado de fora nunca
aprendi a me localizar

Manhã passo horas
me arreglando assim
me calo 
Palavras em minhas
gavetas-veias abertas
machucam

Esqueço um sentimento
no fundo procuro
não cabe escrevo

Gosto de viajar mas
sofro de bagunça
quando eu chego

-

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Feriado

Como é bom acordar
às dez! Abrir os olhos
o dia irrecusável,
suave feito entrar
em banho de água quente
Ganhasse sempre assim
a manhã de presente...

Sem pedir horas na cama
― mais um minutinho apenas
Desapegar do lençol
o corpo ávido. Os pés
se amparam no chão a vida
te espera. ― Escuta o caminhão
de abacaxi-pérola?



-

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Astrolábio

Esmero
nos quadris entregues
à divagação cada um
de seus dedos navega
traçando a rota
planisférica aos olhos
de quem lá no céu
conta estrelas


-

sábado, 27 de agosto de 2011

Heracliteando

("Comum é princípio e fim em periferia de círculo." Heráclito)

Prefiro o meio ao fim
a pedra à clareza sólida
a Serra do Mar a borda
e um vale infinito ao meio

O meio se tem com o fim
conflito de vida e morte
paira em mim quanto eu receio
extinguir sem fazer-me inteiro

o fim sem o meio
é oco tear de agulha
sem linha vazio enquanto
não chega e quando
se atinge
finda.

Andar se assemelha ao sol
nascer tarda todo dia
o rio não se rediz
o fim sem amor desvia

Princípio comum de forma
esculturada no alheio
existirmos só se destina
no meio  que é o fim primeiro


--